sexta-feira, outubro 15, 2010

GLÓRIA DEI VIVENS HOMO!

No longínquo século II, um dos mais ilustres dentre os bispos e teólogos da Igreja, Santo Irineu de Lião, afirmava: “Nunca poderíamos obter a incorrupção e a imortalidade a não ser unindo-nos à incorrupção e à imortalidade. Mas como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a imortalidade se tornassem aquilo que somos, a fim de que o corruptível fosse absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade e, deste modo, pudéssemos receber a adoção de filhos? (Contra as Heresias, III,19,1). Aqui, o santo Bispo quer dizer, entre outras coisas, que o homem sozinho não se salva, não chega a ser aquilo que sonha ser, não chega à plenitude, não se realiza. Aquilo que hoje chamamos de realização da existência, de vida plena, de sentido da vida e de salvação, Irineu chama de “incorrupção e imortalidade”: vida plena neste mundo e na glória eterna! Pois bem, o homem sozinho, não chega a isso. Foi preciso que Deus lhe estendesse a mão, que o Filho de Deus se tornasse filho do homem, que o Verbo se fizesse carne, um de nós, um como nós, um vivendo a nossa aventura humana: “Tendo falhado o homem, Deus foi magnânimo, pois previa a vitória que pelo Verbo lhe seria restituída. Porque a força se perfaz na fraqueza, revelou-se então a benignidade de Deus e seu esplêndido poder” (Ibidem, III,20,1).

Não deixa de ser surpreendente que, passados dois mil anos de cristianismo, a nossa cultura ocidental, engendrada pela fé cristã e por ela marcada, revele-se tão bêbada de prepotência e tão cega, na ilusão de construir uma civilização sem Deus, como se o homem se bastasse, fosse seu próprio fim, seu critério último ou, no dizer dos sofistas gregos, “a medida de todas as coisas”. Não! O homem não é a medida de todas as coisas, o critério último do bem e do mal, do certo e do errado! Ao menos esse homem, fechado em si, incapaz de reconhecer que ele vem de um Outro, a esse Outro está sempre referido e deste Outro dependerá sempre!

Por que esta reflexão, no presente artigo? Por toda essa discussão que aí está sobre o aborto. Recordo que o Santo Padre João Paulo II advertia, de modo belíssimo: “Reconhecer a vida! Reconhecer significa, antes de tudo redescobrir com renovada admiração aquilo que a própria razão e a ciência não temem chamar de ‘mistério’. A vida, especialmente a vida humana, suscita a pergunta fundamental, que o Salmista exprime de modo insuperável: ‘Que é o homem para que te recordes dele, o filho do homem, para que dele cuides?’ (Sl 8,5). Ninguém é dono da vida, ninguém tem o direito de manipular, oprimir ou até mesmo tirar a vida, sua ou dos outros”.

Nosso tempo tem a seríssima tendência de desrespeitar a vida, no seu início (manipulações imorais, aborto, pílulas do dia seguinte), no seu desenvolver-se (pela fome, pela prostituição e libertinagem sexual, pelos entorpecentes, pelo fumo e o álcool, pela violência) e no seu fim (desprezo pelos anciãos, eutanásia). Tudo isso revela, por um lado, um vazio de Deus, de sentido do Absoluto que dá a razão última e o valor supremo de nossa existência e, por outro lado, revela também uma auto-suficiência humana, que pensa bastar-se a si mesma! As palavras do Papa, neste sentido, são proféticas: “Ninguém é dono da vida!” Esta é o dom primordial, o maior de todos: dom, presente imerecido e inesperado, surpresa absoluta vinda de Deus... aquilo que na linguagem teológica chamamos de “graça”! Isso mesmo: a vida é graça, como graça deve ser acolhida e como graça deve ser vivida!

Dramático na nossa cultura ocidental é que o homem nega Deus para afirmar-se, como um adolescente que somente se sente autônomo negando a autoridade dos pais. O triste é que negando Deus, negando sua autoridade sobre nós, não nos tornamos mais livres nem dignificamos mais a existência humana, mas, ao contrário, sem Deus valemos menos, sem Deus a vida humana, em última análise, está entregue ao próprio capricho humano. Basta que olhemos ao nosso redor: quão pouco vale o homem. Para o sistema globalizado ele somente vale pelo que tem, pelo que produz e pelo que consome! Ao invés, quando Deus é retamente compreendido, torna-se a maior garantia da preciosidade da vida humana – do primeiro ao último momento de sua existência! Era isso também que Santo Irineu queria exprimir ao dizer: Gloria Dei vivens homo (A glória de Deus é o homem vivo). Deus é o Amigo dos homens, e somente na alegria e na plenitude humana a sua glória manifesta-se realmente! O homem morto, humilhado, coisificado pela direita ou pela esquerda ideológica, pisoteado na sua dignidade, não glorifica a Deus, de quem é imagem. Mas, Irineu também completava: Vita hominis visio Dei (A vida do homem é a visão de Deus). Somente na visão (= na comunhão, na intimidade) de Deus o homem encontra sua verdadeira vida, porque descobre o âmago da sua dignidade e o fundamento do sentido de sua existência. Sem a visão de Deus em sua vida, sem ter a Deus como seu horizonte, o homem se perde, o homem “morre” e, morto, também não revela a glória de Deus. Eis a nossa civilização, que autoriza aborto, como se fôssemos senhores da vida e da morte, que manipula células-tronco de embriões humanos, que brinca de clonar e de facundar in vitro, desejando plagiar o próprio Deus, zombando do próprio Autor e Senhor da vida.

Nestas eleições o tema do aborto e outras questões éticas surgiram com força. Que se coloquem as ideias com clareza, sem demonizar ou canonizar ninguém. E que o eleitor, sendo cristão e inteligente, vote com honestidade, diante de Deus e de sua consciência.